Acordei atordoado, sentindo
uma forte dor de cabeça e uma sensação de cansaço por todo o corpo. Fazia frio,
muito frio; meus pés e mãos pareciam congelados. Apesar do enorme esforço que
fazia para vencer o desânimo e o peso das pálpebras, meus olhos insistiam em
permanecer fechados. Quando enfim consegui abri-los, foi como se não tivesse
feito.
Não fez diferença alguma,
não enxergava absolutamente nada!
Voltei a fechar e abrir os
olhos algumas vezes, na tentativa de acostumá-los com a escuridão.
Nada. Nem uma sombra, nadinha mesmo... Nem um movimento, nenhum raio de
luz!
O silêncio também era pleno,
absoluto, total ausência de sons, de qualquer ruído. Até a minha mente parecia
vazia. Não conseguia lembrar de nada, de onde eu estava, o que tinha feito
antes de estar ali. Uma coisa me parecia clara: eu estava em algum lugar onde
jamais estive e numa situação nada confortável. Os pensamentos começaram a
fluir, ou melhor... “Jorrar” de
maneira rápida e descontrolada.
Perdi totalmente a lógica, o
senso crítico e concluí, finalmente, que estava... Do outro lado da vida; mortinho
da silva; vestindo o terno de madeira; fui para a cidade dos pés juntos, dos
dedos cruzados, morreu o bicho... Acabou-se a peçonha, virei presunto, finito... "capicci"?
No instante seguinte descobri que a gente não consegue chorar depois de morto, sabiam? É só um grande aperto no coração, uma dor imensa no peito, uma tristeza infinita. Foi tudo o que eu senti quando lembrei que jamais veria de novo a minha princesinha.
Como eu queria chorar, pra
diminuir o sofrimento de imaginá-la inconformada, desesperada, perdida,
sozinha, sem rumo! Que seria da minha amada? Ela não iria conseguir viver sem
mim. Que injustiça, meu D-us!
Separar a gente, logo agora,
que tudo ia tão bem!
Mas algo me intrigava ainda
mais:
“O além não pode ser só isso! A gente não vai passar o resto da
eternidade deitado, imóvel, dentro de um buraco frio e escuro!”
Senti um enorme calafrio!
Não queria admitir, mas começava a acreditar que eu não estava tão morto assim.
Por enquanto! Aproveitei que estava com as mãos sobre o peito e me belisquei.
Aaaiii... Doeu!
Doía também o meu braço
esquerdo, comprimido contra algo que delimitava o espaço, ali, do meu lado. Com
o corpo todo tremendo, o coração tentando sair pela boca, quase sem conseguir
respirar, ergui lentamente o antebraço esquerdo e constatei o que eu mais
temia: toquei com as pontas dos dedos e depois com a palma da mão, uma
superfície lisa e fria, logo acima de mim e à minha esquerda. Não havia mais
dúvida.
Eu estava dentro de um caixão e o que é pior... Enterrado vivo!
Não sei o que é pior:
descobrir-se morto, preso no além, ou saber-se ainda estava vivo, mas prestes a
morrer. E aí eu vivi a experiência de que todo mundo já ouviu falar um dia:
virei um espectador solitário do filme completo da minha vida e achei, mais uma
vez, injusto o que estava acontecendo comigo. Nunca fiz mal a ninguém... Tá bem confesso! Apenas a alguns
poucos. Tá bem, eu confesso... A vários,
diversos! Mas, tinha tantos planos para o futuro e queria morrer senil, ao
lado da mulher da minha vida.
Há quanto tempo eu estaria
ali? O que realmente teria acontecido comigo?
Já tinha ouvido falar de uma
tal doença que causa morte aparente e que se tinha notícias de pessoas que
foram enterradas vivas. Eu morria de pânico só de pensar, e agora estava ali,
enterrado e, até prova em contrário; nem um pouquinho morto.
Comecei a rezar pra me
acalmar e enquanto buscava a ajuda celestial, me preparando pra qualquer
eventualidade, pensava também na possibilidade de escapar daquele ardil.
A primeira coisa a fazer era
continuar imóvel, como sempre estive, e ficar o mais sereno possível, pra
poupar o oxigênio. A segunda providência a ser tomada seria arquitetar um plano
pra tentar chamar a atenção de alguém, na hora certa. Afinal de contas, pelo pouco
que eu sei, todo cemitério tem as suas horas de movimento intenso.
Incrível como o filme da minha vida continuava passando, até enquanto eu rezava ou planejava a minha fuga dali. Talvez eu não tenha sido tão bonzinho assim! Mesmo com a minha Preta pedindo sempre pra eu maneirar, não conseguia me afastar da minha segunda paixão, a branquinha destilada, companheira de todas as horas. A princesinha sempre disse que a “cachaça” era a sua grande rival. Se eu saísse dali - prometi a mim mesmo:
- Deixaria de beber!
Lembrei do passeio que
tínhamos feito recentemente com os nossos amigos, Aldo e Michelle. Planejamos e
nos preparamos o ano inteiro para a nossa viagem de férias. Compramos juntos;
um trailer, pra levarmos a reboque, e lá fomos nós, inaugurar a nossa “casa de
campo móvel” no camping da cidade vizinha. O trailer é pequeno, não oferece
muito conforto, as camas são beliches apertados, mas é a nossa jóia
recém-adquirida. Falta espaço, mas sobra boa vontade. A viagem foi muito
divertida.
Viajamos. Os quatros em um
só carro, rebocando a nossa riqueza ambulante. Ao chegarmos fizemos todas as
instalações do trailer e armamos a barraca auxiliar, pra aumentar a nossa área
coberta. Depois passamos à melhor parte: usufruir tudo aquilo. Não preciso
dizer que...
Matei a saudade da branquinha!
Descontei todos os atrasados
e, no final, ainda dei uma lavada com uma loirinha gelada, que não sou de
ferro.
Ali, no meu túmulo, não conseguia lembrar da nossa viagem de volta, por mais que me esforçasse. Será que tinha acontecido conosco algum acidente grave e todos haviam morrido? Isso explicaria o fato de eu estar ali: julgaram que eu também estivesse morto.
- “Não! Isso não! A minha
gringa morta, eu não vou aguentar! Prefiro que seja somente eu. Fui enterrado vivo, e pronto. E vou escapar daqui”. E deixava claro, pra mim mesmo, que não
aceitava outro pensamento.
Só estava achando esquisito
eu não lembrar de quando me confundiram com um morto! Dizem que a pessoa com
aquela doença, catalepsia, se eu não me engano, fica aparentemente morta,
totalmente estática, mas consciente.
Fica sentindo lhe jogarem de
um lado pro outro pra botar a roupa de defunto, percebe quando lhe colocam no
caixão e enchem tudo com aquelas flores fedorentas (Já reparam que as flores de
velório são realmente... fedegosas?). E o pior é quando lhe enfiam aquelas
bolas de algodão no nariz, não sei como
o coitado não morre de verdade, sufocado!
Eu lembraria, com certeza,
se tivesse ouvido o choro da minha gringuinha junto ao meu caixão. Era isso que
me preocupava no momento: ter que considerar, de novo; as possibilidades de
todos terem morrido.
Se o negócio tivesse sido
mesmo acidente, aí eu estaria ferrado de vez.
E se, por azar, me tivessem
feito uma autópsia, além de todo quebrado, enterrado, eu estaria também todo
costurado e faltando alguns pedaços.
Já estava pensando que não
mais valia a pena tentar sair dali, quando me pareceu ouvir um ruído. Nem
desconfiava que meu coração ainda estava tão forte, daquele jeito! Parecia uma
bateria de escola de samba completa.
Prendi a respiração pra poder escutar melhor e quase tive um enfarte
quando identifiquei uma voz humana, muito longe, mas que parecia se aproximar.
Naquele momento eu investi tudo o que me restava de voz, de força, de fé, medo
e coragem, num grito desesperado:
- SOCORRROOOO! AJUDEM-ME! AQUI EMBAIXO! EU ESTOU VIVO! PELO AMOR DE
DEUS, ME TIREM DAQUI!
Enquanto berrava, rasgando
as cordas vocais, batia com mãos e pés no teto do meu sepulcro, com toda a
força do desespero, quase quebrando os punhos, tamanha era a minha agonia.
Repentinamente ouvi uma
pancada forte e um clarão de luz intenso feriu os meus olhos. Então eu tive a
visão mais doce, mais desejada: a minha princesinha corria para mim, para me
salvar. Envolveu-me em seus braços, me ninou e me cobriu de beijos. Aos poucos
fui me acalmando, olhando em volta. Vi meus amigos queridos, Aldo e Michelle,
e, finalmente, reconheci o nosso trailer com suas caminhas apertadas, que mais
pareciam gavetas. Eu estava em uma delas.
Contaram-me depois, que eu
havia exagerado na bebida e eles me colocaram na cama, pra curar a ressaca. Era
a nossa primeira noite no acampamento.
Não tive coragem de
contar-lhes a minha viagem. Só falei que tive um terrível pesadelo.
Depois tomei um trago, só unzinho, pra me recuperar.
E brindei à vida!
Do livro NUNCA antes (e nem depois, eh; eh!) publicado...
"EM BUSCA DE PEGASUS"!
Autor: Cesar "Xyko" Borges
Editora Scortecci
São Paulo/SP
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